domingo, 9 de agosto de 2015

Um dia de pai. Adriana Falcão

UM DIA DE PAI

Adriana Falcão

Quando o despertador toca, e os sonhos fogem, aí começa: banho, barba, café, beijo, e rua!
A vida tem essa mania de passar as obrigações na cara dele.
– Bom trabalho, pai!
– Vê se não se atrasa pro jantar.
– E não esquece de deixar aqueles 50 que eu pedi ontem.

Quando era garoto, ele queria ser cantor de rock. Hoje trabalha muito, sai pouco, agrada médio, raramente chora, adora música, de vez em quando arrisca um samba. Desistiu de ficar rico. Desistiu de ficar jovem. Desistiu de tocar guitarra. Desistiu de falar inglês fluentemente. Desistiu de entender as mulheres. Desistiu. Infelizmente.

Faz contas e mais contas.
Vê TV pra se distrair um pouco.
Bebe quando pode.
Quando bebe, geralmente ele ama.
Parou de fumar várias vezes. Parou de dançar. Parou de pensar. Parou de insistir. Parou.
Tem colesterol alto. Fica meio preocupado. Depois passa.
Joga paciência no computador apenas quando está impaciente.
Além do colesterol, ainda tem a tendinite.
Fora a vista cansada.
Lia muito antigamente. Leu até filosofia.
Nunca mais foi ao cinema. Sexta que vem vai sem falta. Sábado tem jogo. Domingo tem pizza. Segunda tem mais. Terça tem mais ainda.
Dólar sobe. Salário fica. Restaurante tá pela hora da morte. Praia que é bom tá poluída. Problema tem muito. Candidato não falta. Solução é que tá bastante difícil. Assim não há quem agüente. Depois passa.
Já tentou promessa. Já tentou incenso. Já tentou calmante. Já tentou contar até dez. Um dia chegou a mil e duzentos. Já tentou de tudo, na verdade. Continua tentando.

A mulher pede atenção. O filho ficou em recuperação. As filhas querem ora isso, ora aquilo, sabe como é que é menina. A mais velha arranjou um namorado. A mais nova é a cara da mãe. Viu só como a mãe dela já foi linda?
Adorava cartas, principalmente as que vinham em envelope bonito e com vários selos colados, mas nunca mais recebeu nenhuma.
É praticamente fiel.
Pretende conhecer Veneza.
De vez em quando, ele olha pra trás.
O garoto que queria ser cantor de rock até que não está tão longe assim, lembra?
Luz negra, calça de nesga, rum com Coca, violão, passeata, LP, parece que foi outro dia.
Mas hoje não dá pra ter saudade. Cadê tempo? Olha a hora! Olha pra frente. Amanhã tem reunião importante. Tomara que dê tudo certo. Dizem que o negócio tá feio. Imagina como é que vai ser quando as crianças crescerem. Se ao menos desse pra juntar algum pro futuro. Como é que se diminui ainda mais esse orçamento? Só refazendo as contas. Mas a mulher reclama que nunca mais saiu pra jantar. Tudo bem. Vá lá que seja. Promete para si mesmo que não vai beber muito hoje. Só uma. Ou duas. No máximo, três. (Às 4 da manhã estará irremediavelmente arrependido.) Depois passa.
Todo dia é isso: matar um leão, encarar chateação, cumprir obrigação, garantir o seu quinhão, e ainda manter o sorriso.
Uma vez por ano tem Dia dos Pais. Ele guarda com carinho o peso de papel que o filho pintou quando ainda estava no jardim.
– Presente pra mim? Muito obrigado.
O garoto que queria ser cantor de rock hoje é pai de família e às vezes fica especialmente emocionado.
Depois passa.
Amanhã é outro dia.


Texto: Adriana Falcão; Fonte: Veja Rio


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